"Há palavras que nos beijam" (Alexandre O'Neill), que nos tocam que nos marcam, que nos transformam...

Textos, pretextos e contextos pretende ser um blogue de palavras...palavras sentidas, vividas ou, apenas, ditas. Pretende, também, ser um blogue de transformações...em mim e em quem o lê. Como dizia Fernando Pessoa, "Sentir? Sinta quem lê!"

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Sobre o Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
— a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

— Embaixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.

— E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder

domingo, 5 de agosto de 2007

Porque vale a pena conhecer I

M. Tiago Paixão




Nasce em Lisboa no ano de 1982. Depois de se deixar descobrir pela palavra não mais foi o mesmo.O tempo é incerto, certamente. O movimento em que se abandona leva-o a publicar, em 2005, o seu primeiro livro – Sentimentos Sobrepostos.
Depois disso, organiza o I Prémio Poesia-Nova, vence o Prémio de Poesia da Biblioteca Museu República e Resistência. É membro fundador da Cooperativa Literária.
Em 2007, publica o seu mais recente livro – l'étranger / the outkast ou o quarto sem ar.
É licenciado em L.L.M. – Estudos Portugueses. É, ainda, director da revista Callema – Publicação Semestral da Cooperativa Literária.


E se me olhasses mais devagar

No verão não pode ser por causa do sol
que brilha mais tempo, mas,
num dia de outono, com a luz certa
enevoada, e se tu,e se me olhasses mais devagar
e se não houvesse tempo ou ele mais devagar
ou se quisesses reparar num só pormenor,
no brilho dos meus olhos a olhar-te
e se me olhasses mais devagar,
num dia como este,irias perceber tudo de uma vez…
tem de ser de dia, preciso da (tua) luz incolor

Tens em ti este céu que é teu
Este dia sem cor, o céu que sou eu
In Sentimentos Sobrepostos

Hugo Milhanas Machado

Nasce em Lisboa, a 12 de Dezembro de 1984. Em 2006, conclui a Licenciatura em Estudos Portugueses (Maior em Língua e Literatura Portuguesa e Minor em Estudos Literários e Comparados), na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Actualmente, é professor visitante na Universidad de Salamanca. É, ainda, co-fundador da Cooperativa Literária e da revista Callema.

Do autor: poema em forma de nuvem (2005, Gama Edições) e Masquerade (2006, Sombra do Amor Edições).
Recebe vários prémios, nomeadamente, o Prémio Literário da Nova 2003; Lisboa à Letra 2005; Lisboa à Letra 2006, Menção Honrosa no Castello di Duino 2006; 2º e 3º lugares no Prémio Poesia Nova 2006.




poema para d.quijote de la mancha de miguel de cervantes

morríamos nessa cidade e o nosso tempo era já
um outro tempo era forçosamente o desejar e o
indelével recordar de um outro tempo
triste e irremediavelmente aquém e além da nossa
presença no mundo.
fugíamos. pela noite pelos silêncios das casas
os homens e a cidade dormindo talvez para
jamais acordar – porque impossível era também a vigília
e o adormecer
e em cada palavra a invenção de um mar
e em cada novo mar um novo homem.

diziam-nos impraticável o nosso verbo
inverosímil a curva em nossas bocas.

e acabámos morrendo com uma pérola no peito a fazer de azul.

in poema em forma de nuvem

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Todo aquele que abre um livro entra numa nuvem
ou para beber a água de um espelho
ou para se embriagar como um pássaro ingénuo
A sôfrega retina
vai-se tornando felina e inflada
e os seus liames tremem entre o júbilo e a agonia
Um livro é redondo como uma serpente enrolada
e formado de fragmentos onde lateja o sangue de um pulso
que já não é de um autor que nunca o foi
e que será sempre o ritmo do que está a nascer
irrigando o nada e os terraços sobre os abismos
Nunca o livro se completa embora o redondo o circunde
e o mova para o seu interior sem nunca o envolver
Jamais a nuvem se dissipa mesmo quando a claridade ofusca
Como se fosse preciso adormecer nela como sobre os ombros
[do mundo
para acompanhar o seu fluxo ingenuamente novo
com os delicados diademas de fogo e espuma
O livro ora é de veludo ora de bronze
e os seus traços abrem janelas ou terraços
sobre o corpo latente como um arbusto entre pedras
Se a palavra vibra como um meteoro ou desliza como uma
[anémona
Ou não é mais do que uma estrela de areia
a sua proa sulca o incessante intervalo
entre o ardor de incompletos liames
e a estátua aérea que se eleva à sua frente
e continuamente se forma e se deforma
por não ser nada e ser o alvo puro
de um movimento ingénuo sonâmbulo e incerto

António Ramos Rosa

Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.


Alexandre O'Neill