Publicação Semestral
número 02/Maio 2007
Uma poética no Sótão
No meio de coisas velhas procuro o que
é novo. Em cada fim vejo um princípio;
e todos os cacos se voltam a colar,
mesmo quando faltam pedaços, ou não
se sabe a que parte pertence a outra.
É assim com o poema: faço-o com as
palavras velhas, as que estão cheias de
bolor, as que foram atiradas para um canto
do dicionário. Algumas, não sei o que
querem dizer; outras, disseram tantas vezes
o mesmo que já perdi o sentido do que
dizem. Mas quando as colo, no verso,
o que ouço tem sempre um outro sentido.
Este poema, por exemplo, não tem
nada de novo. As palavras são fáceis,
os sentidos são óbvios. E é por isso
que ando, no meio dele, à procura de
coisas novas; e ao chegar ao fim,
vejo um princípio, e sei que tudo se volta
a colar, como se nada aqui faltasse.
Nuno Júdice
Acordar
As sombras não se transformam em luz quando
o dia nasce, só porque o dia nasce. A noite cola-se-nos
aos olhos, e o que temos pela frente é
um campo onde secaram os passos dos que partiram,
sem deixar uma palavra de despedida.
Para além deste céu onde um vento passado
estagnou, recorro a um quadro sem moldura
nem imagem. Tenho-o dentro de mim, pendurado
num prego de acaso, e o tempo fá-lo andar
de um lado para o outro, sem me deixar fixá-lo.
Mas o que vejo, entre a sombra e o quadro vazio,
tem a lógica luminosa da vida que não pára. Por
vezes, é assim: a noite abraça-nos como se nos quisesse
prender ao seu mundo; depois, a Terra recomeça
o seu curso, E é como se esta rotação sem rumo
nos quisesse dizer que somos mais do que pó,
que temos na alma um resto que sobrou do nada inicial,
e que o pensamento corre em direcção à eternidade.
Nuno Júdice
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