"Há palavras que nos beijam" (Alexandre O'Neill), que nos tocam que nos marcam, que nos transformam...

Textos, pretextos e contextos pretende ser um blogue de palavras...palavras sentidas, vividas ou, apenas, ditas. Pretende, também, ser um blogue de transformações...em mim e em quem o lê. Como dizia Fernando Pessoa, "Sentir? Sinta quem lê!"

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Contextos

«Depois do sucesso do seu álbum estreia “Tudo é para Sempre “, os Donna Maria regressam com um novo trabalho de originais. Gravado e misturado no Estúdio Sonic State entre Maio e Julho deste ano e masterizado pelo engenheiro de som António Pinheiro da Silva e com produção de Miguel A. Majer e Ricardo Santos, o novo trabalho dos DONNA MARIA - “ Música Para Ser Humano” - conta com as participações de vários artistas nacionais, em destaque:Rui Veloso em “Amar Como te Amei” (autor da música que abre o disco); Luis Represas em dueto com Marisa Pinto em “Nós Nunca Somos Iguais”, tema que conta também com a participação de Rão Kyao na Flauta; Raquel Tavares participa em “Anti-Repressivos “ e finalmente Julio Pereira em “Zé Lisboa“.»







Letra: Miguel Majer
Música: Miguel Majer e Ricardo Santos

Há amores assim
Que nunca têm início
Muito menos têm fim
Na esquina de uma rua
Ou num banco de jardim
Quando menos esperamos
Há amores assim

Não demores tanto assim
Enquanto espero o céu azul
Cai a chuva sobre mim
Não me importo com mais nada
Se és direito ou o avesso
Se tu fores o meu final
Eu serei o teu começo

Não vou ganhar
Nem perder
Nem me lamentar
Estou pronta a saltar
De cabeça contra o mar

Não vou medir
Nem julgar
Eu quero arriscar
Tenho encontro marcado
Sem tempo nem lugar

Je t’aime j’adore
Um amor nunca se escolhe
Mas sei que vais reparar em mim
Yo te quiero tanto
E converso com o meu santo
Eu rezo e até peço em latim

Quando te encontrar sei que tudo se iluminará
Reconhecerei em ti meu amor, a minha eternidade
É que na verdade a saudade já me invade
Mesmo antes de te alcançar
É a sede que me mata
Ao sentir o rio abraçar o mar

Sem lágrima caída
Sou dona da minha vida
Sem nada mais nada
De bem com a vida

domingo, 9 de dezembro de 2007

Boca do Inferno

Actual livro de cabeceira: Boca do Inferno de Ricardo Araújo Pereira.


Embora esteja inserida no grupo, não posso deixar de admitir que esta crónica está genial.




quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

José Luís Peixoto. Cada vez mais presente nas minhas leituras.Embora o seu mais recente livro se intitule Cal, o livro de poesia A casa, A Escuridão merece ser (re)conhecido.

A TUA AUSÊNCIA É, EM CADA MOMENTO, A TUA AUSÊNCIA.

a tua ausência é, em cada momento, a tua ausência.
não esqueço que os teus lábios existem longe de mim.
aqui há casas vazias. há cidades desertas. há lugares.

mas eu lembro que o tempo é outra coisa, e tenho
tanta pena de perder um instante dos teus cabelos.

aqui não há palavras. há a tua ausência. há o medo sem os
teus lábios, sem os teus cabelos. fecho os olhos para te ver
e para não chorar.


A casa, A Escuridão, José Luís Peixoto



ESTE LIVRO.PASSA UM DEDO PELA PÁGINA,SENTE O PAPEL

este livro. passa um dedo pela página, sente o papel
como se sentisses a pele do meu corpo, o meu rosto.

este livro tem palavras, esquece as palavras por
momentos. o que temos para dizer não pode ser dito.

sente o peso deste livro. o peso da minha mão sobre
a tua. damos as mãos quando seguras este livro.

não me perguntes quem sou. não me perguntes nada.
eu não sei responder a todas as perguntas do mundo.

pousa os lábios sobre a página, pousa os lábios sobre
o papel. devagar, muito devagar. vamos beijar-nos.

A casa, A Escuridão, José Luís Peixoto

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Actuação escrita

Pode-se escrever

Pode-se escrever sem ortografia
Pode-se escrever sem sintaxe
Pode-se escrever sem português
Pode-se escrever numa língua
[sem saber essa língua
Pode-se escrever sem saber escrever
Pode-se pegar na caneta sem haver escrita
Pode-se pegar na escrita sem haver caneta
Pode-se pegar na caneta sem haver caneta
Pode-se escrever sem caneta
Pode-se sem caneta escrever caneta
Pode-se sem escrever escrever plume
Pode-se escrever sem escrever
Pode-se escrever sem sabermos nada
Pode-se escrever nada sem sabermos
Pode-se escrever sabermos sem nada
Pode-se escrever nada
Pode-se escrever com nada
Pode-se escrever sem nada

Pode-se não escrever
Pedro Oom

sábado, 17 de novembro de 2007

Lançamento

Hoje, pelas 16horas, no Grémio Lisbonense:

domingo, 11 de novembro de 2007

Castidade

O perdido caminho, a perdida estrela
que ficou lá longe, que ficou no alto,
surgiu novamente, brilhou novamente
como o caminho único, a solitária estrela.

Não me arrependo do pecado triste
que sujou minha carne, suja toda carne.
O caminho é tão claro, a estrela tão larga,
os dois brilham tanto que me apago neles.

Mas certamente pecarei de novo
(a estrela cala-se, o caminho perde-se)
pecarei com humildade, serei vil e pobre,
terei pena de mim e me perdoarei.

De novo a estrela brilhará, mostrando
o perdido caminho da perdida inocência.
E eu irei pequenino, irei luminoso
conversando anjos que ninguém conversa.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Porque vale a pena conhecer II

Porque vale a pena conhecer a revista literária Callema.

Publicação Semestral
número 02/Maio 2007



Uma poética no Sótão

No meio de coisas velhas procuro o que
é novo. Em cada fim vejo um princípio;
e todos os cacos se voltam a colar,
mesmo quando faltam pedaços, ou não
se sabe a que parte pertence a outra.

É assim com o poema: faço-o com as
palavras velhas, as que estão cheias de
bolor, as que foram atiradas para um canto
do dicionário. Algumas, não sei o que
querem dizer; outras, disseram tantas vezes
o mesmo que já perdi o sentido do que
dizem. Mas quando as colo, no verso,
o que ouço tem sempre um outro sentido.

Este poema, por exemplo, não tem
nada de novo. As palavras são fáceis,
os sentidos são óbvios. E é por isso
que ando, no meio dele, à procura de
coisas novas; e ao chegar ao fim,
vejo um princípio, e sei que tudo se volta
a colar, como se nada aqui faltasse.


Nuno Júdice

Acordar

As sombras não se transformam em luz quando
o dia nasce, só porque o dia nasce. A noite cola-se-nos
aos olhos, e o que temos pela frente é
um campo onde secaram os passos dos que partiram,
sem deixar uma palavra de despedida.

Para além deste céu onde um vento passado
estagnou, recorro a um quadro sem moldura
nem imagem. Tenho-o dentro de mim, pendurado
num prego de acaso, e o tempo fá-lo andar
de um lado para o outro, sem me deixar fixá-lo.

Mas o que vejo, entre a sombra e o quadro vazio,
tem a lógica luminosa da vida que não pára. Por
vezes, é assim: a noite abraça-nos como se nos quisesse
prender ao seu mundo; depois, a Terra recomeça
o seu curso, E é como se esta rotação sem rumo
nos quisesse dizer que somos mais do que pó,
que temos na alma um resto que sobrou do nada inicial,
e que o pensamento corre em direcção à eternidade.

Nuno Júdice


domingo, 28 de outubro de 2007

Hoje sinto-me com sede de poesia. Preciso encontrar, nas palavras, um refúgio.Preciso encontrar palavras!Senti-las!Ouvi-las!Tocá-las!Preciso...

As palavras

Adiro a uma nova terra adiro a um novo corpo
As palavras identificam-se com o asfalto negro
o tropel das nuvens
a espessura azul das árvores acesas pelos faróis
o rumor verde

As palavras saem de um ferida exangue
de teclas de metal fresco
de caminhos e sombras
da vertigem de ser só um deserto
de armas de gume branco

Há palavras carregadas de noite e de ombros surdos
e há palavras como giestas vivas

Matrizes primordiais matéria habitada
forma indizível num rectângulo de argila
quem alimenta este silêncio senão o gosto de
colocar pedra sobre pedra até á oblíqua exactidão?

As palavras vêm de lugares fragmentários
de uma disseminação de iniciais
de magmas respirados
de odor de gérmen de olhos

As palavras podem formar uma escrita nativa
de corpos claros
Que são as palavras? Imprecisas armas
em praias concêntricas
torres de sílex e de cal
aves insólitas

As palavras são travessias brancas faces
giratórias
elas permitem a ascensão das formas
elevam-se estrato após estrato
ou voam em diagonal
até à cúpula diáfana

As palavras são por vezes um clarão no dia calcinado

Que enfrentam as palavras? O espelho
da noite a sua impossível
elipse
Saem da noite despedaçadas feridas
e são signos do acaso pedras de sol e sala da sua língua nascem estrelas trituradas

António Ramos Rosa

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.

António Ramos Rosa

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Este, que um deus cruel arremessou à vida,
Marcando-o com o sinal da sua maldição,
— Este desabrochou como a erva má, nascida
Apenas para aos pés ser calcada no chão.

De motejo em motejo arrasta a alma ferida...
Sem constância no amor, dentro do coração
Sente, crespa, crescer a selva retorcida
Dos pensamentos maus, filhos da solidão.

Longos dias sem sol! noites de eterno luto!
Alma cega, perdida à toa no caminho!
Roto casco de nau, desprezado no mar!

E, árvore, acabará sem nunca dar um fruto;
E, homem há de morrer como viveu: sozinho!
Sem ar! sem luz! sem Deus! sem fé! sem pão!
sem lar!

Olavo Bilac

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

O Tempo e a Vida

Que bom ter o relógio adiantado!...
A gente assim, por saber
Que tem sempre tempo a mais,
Não se rala nem se apressa.
O meu sorriso de troça,
Amigos,
Quando vejo o meu relógio
Com três quartos de hora a mais!...
Tic-tac... Tic-tac...
(Lá pensa ele
Que é já o fim dos meus dias)
Tic-tac...
(Como eu rio, cá para dentro,
De esta coisa divertida:
Ele a julgar que é já o resto
E eu a saber que tenho sempre mais
Três quartos de hora de vida).

Sebastião da Gama

sábado, 29 de setembro de 2007

Este é o poema do amor

Este é o poema do amor.

O poema que o poeta propositadamente escreveu

só para falar de amor,

de amor,

de amor,

de amor,

para repetir muitas vezes amor,

amor,

amor,

amor.

Para que um dia, quando o Cérebro Electrónico

contar as palavras que o poeta escreveu,

tantos que,

tantos se,

tantos lhe,

tantos tu,

tantos ela,

tantos eu,

conclua que a palavra que o poeta mais vezes escreveu

foi amor,

amor,

amor.





Este é o poema do amor.

António Gedeão

Outro Testamento

Quando eu morrer deitem-me nu à cova
Como uma libra ou uma raiz,
Dêem a minha roupa a uma mulher nova
Para o amante que a não quis.

Façam coisas bonitas por minha alma:
Espalhem moedas, rosas, figos.
Dando-me terra dura e calma,
Cortem as unhas aos meus amigos.

Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados.
As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce...
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação.

Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa,
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos têm licor de ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência.

Quando eu morrer...
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro.

Minha casa de sons com o morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Minha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terras onde moro,
Nunca vos deixarei.

Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Dêem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me — só horizonte — para o mar.

Vitorino Nemésio

sábado, 22 de setembro de 2007

Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.

Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só é preciso é saber
que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.

Nuno Judice

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Dizem que a paixão o conheceu

dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nunhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos

Al Berto

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Sobre o Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
— a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

— Embaixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.

— E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder

domingo, 5 de agosto de 2007

Porque vale a pena conhecer I

M. Tiago Paixão




Nasce em Lisboa no ano de 1982. Depois de se deixar descobrir pela palavra não mais foi o mesmo.O tempo é incerto, certamente. O movimento em que se abandona leva-o a publicar, em 2005, o seu primeiro livro – Sentimentos Sobrepostos.
Depois disso, organiza o I Prémio Poesia-Nova, vence o Prémio de Poesia da Biblioteca Museu República e Resistência. É membro fundador da Cooperativa Literária.
Em 2007, publica o seu mais recente livro – l'étranger / the outkast ou o quarto sem ar.
É licenciado em L.L.M. – Estudos Portugueses. É, ainda, director da revista Callema – Publicação Semestral da Cooperativa Literária.


E se me olhasses mais devagar

No verão não pode ser por causa do sol
que brilha mais tempo, mas,
num dia de outono, com a luz certa
enevoada, e se tu,e se me olhasses mais devagar
e se não houvesse tempo ou ele mais devagar
ou se quisesses reparar num só pormenor,
no brilho dos meus olhos a olhar-te
e se me olhasses mais devagar,
num dia como este,irias perceber tudo de uma vez…
tem de ser de dia, preciso da (tua) luz incolor

Tens em ti este céu que é teu
Este dia sem cor, o céu que sou eu
In Sentimentos Sobrepostos

Hugo Milhanas Machado

Nasce em Lisboa, a 12 de Dezembro de 1984. Em 2006, conclui a Licenciatura em Estudos Portugueses (Maior em Língua e Literatura Portuguesa e Minor em Estudos Literários e Comparados), na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Actualmente, é professor visitante na Universidad de Salamanca. É, ainda, co-fundador da Cooperativa Literária e da revista Callema.

Do autor: poema em forma de nuvem (2005, Gama Edições) e Masquerade (2006, Sombra do Amor Edições).
Recebe vários prémios, nomeadamente, o Prémio Literário da Nova 2003; Lisboa à Letra 2005; Lisboa à Letra 2006, Menção Honrosa no Castello di Duino 2006; 2º e 3º lugares no Prémio Poesia Nova 2006.




poema para d.quijote de la mancha de miguel de cervantes

morríamos nessa cidade e o nosso tempo era já
um outro tempo era forçosamente o desejar e o
indelével recordar de um outro tempo
triste e irremediavelmente aquém e além da nossa
presença no mundo.
fugíamos. pela noite pelos silêncios das casas
os homens e a cidade dormindo talvez para
jamais acordar – porque impossível era também a vigília
e o adormecer
e em cada palavra a invenção de um mar
e em cada novo mar um novo homem.

diziam-nos impraticável o nosso verbo
inverosímil a curva em nossas bocas.

e acabámos morrendo com uma pérola no peito a fazer de azul.

in poema em forma de nuvem

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Todo aquele que abre um livro entra numa nuvem
ou para beber a água de um espelho
ou para se embriagar como um pássaro ingénuo
A sôfrega retina
vai-se tornando felina e inflada
e os seus liames tremem entre o júbilo e a agonia
Um livro é redondo como uma serpente enrolada
e formado de fragmentos onde lateja o sangue de um pulso
que já não é de um autor que nunca o foi
e que será sempre o ritmo do que está a nascer
irrigando o nada e os terraços sobre os abismos
Nunca o livro se completa embora o redondo o circunde
e o mova para o seu interior sem nunca o envolver
Jamais a nuvem se dissipa mesmo quando a claridade ofusca
Como se fosse preciso adormecer nela como sobre os ombros
[do mundo
para acompanhar o seu fluxo ingenuamente novo
com os delicados diademas de fogo e espuma
O livro ora é de veludo ora de bronze
e os seus traços abrem janelas ou terraços
sobre o corpo latente como um arbusto entre pedras
Se a palavra vibra como um meteoro ou desliza como uma
[anémona
Ou não é mais do que uma estrela de areia
a sua proa sulca o incessante intervalo
entre o ardor de incompletos liames
e a estátua aérea que se eleva à sua frente
e continuamente se forma e se deforma
por não ser nada e ser o alvo puro
de um movimento ingénuo sonâmbulo e incerto

António Ramos Rosa

Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.


Alexandre O'Neill

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui --- ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça,
com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado---,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Álvaro de Campos

terça-feira, 10 de julho de 2007

Poema

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco


Mário Cesariny

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Encontrei, de noite, na paragem de um autocarro,
Perdido de pai e mãe, um menino. Como te
Chamas? Literatura. Nome estranho para um
Masculino. Trazia como este nos olhos um susto
Verdadeiro velado por uma ousada fantasia. Via-se
Que a realidade lhe causava muito incómodo. Por exemplo,
Ser noite, estar só, pagar bilhete, ter de saber a direcção,
Sentir fome, estar com frio, respirar tubo de escape. Dei-lhe
Minha mão e, através do veneno das trevas, para não o
Perturbar, trouxe-o para viver comigo. Seu nome
Pouco me dizia, mas por seu olhar daria
A própria escrita.

Maria Gabriela Llansol, O Começo de Um Livro É Preciso

Art, The Timeless Medium

O poeta não quer duplicar o mundo
não quer fazer dele uma cópia:

Luta com a palavra
como Jacob lutou com o anjo
mas a escada que ele sobe
conduz a outras alturas
a outras planuras

É assim que o poeta
Palavra por palavra
como pedra sobre pedra
constrói o edifício do poema

E a sua mão
robótico instrumento comandado
pela algébrica lógica do sentido oculto
produz
deve produzir
o que o mundo não tem
o que o mundo não diz
o que o mundo não é

Ana Hatherly, A Idade da Escrita

segunda-feira, 2 de julho de 2007

NÃO DISSE NADA, AMOR

Não disse nada, amor, não disse nada:
foi o rio que falou com a minha voz
a dizer que era noite e é madrugada
a dizer que eras tu e somos nós.

A dizer os mil rostos e Lisboa
ao longo do teu rosto se te beijo.
À luz de um pombo chamo Madragoa
e Bairro Alto ao mar se te desejo.

Não disse nada, amor. Juro, calei-me:
foi uma voz que ao longe se perdeu.
Cuidei que era Lisboa e enganei-me
pensei que éramos dois e sou só eu.

António Lobo Antunes, Letrinhas de Cantigas

sábado, 30 de junho de 2007

RECEITA PARA FAZER O AZUL

Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas a s cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz – eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.


Nuno Júdice
Porque hoje sinto tudo azul!

Explicação da Eternidade

devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgávamos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
e idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.
José Luis Peixoto, A casa, a Escuridão

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Nota de Abertura

"Há palavras que nos beijam" (Alexandre O'Neill), que nos tocam, que nos marcam, que nos transformam...

Textos, pretextos e contextos pretende ser um blogue de palavras...palavras sentidas, vividas ou, apenas, ditas. Pretende, também, ser um blogue de transformações...em mim e em quem o lê. Como dizia Fernando Pessoa, "Sentir? Sinta quem lê!"